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Quando a casa é o reflexo da mente - e do coração.

~ um relato pessoal sobre o processo de construção na Forqueta ~

 

Jaime Carvalho e Vicente Medaglia

      A gente aprende a imaginar a casa como uma coisa, um objeto simplesmente constituído de materiais e nesse conceito as características principais são os elementos que sejam duráveis e que tenham uma praticidade.  A indústria promove o cimento, o concreto como elemento sólido e durável: a funcionalidade, a praticidade de limpeza estéril. Assepsia. Essa propaganda criou na sociedade, de uma forma geral, uma ausência de consciência das qualidades biológicas dos materiais e também faz com que as pessoas fiquem distantes do que é vivo. Porque a industrialização além de coisificar, coloca as pessoas fora da alçada de empoderamento de consciência. O resultado é que uma parcela significativa da população não se sente empoderada de imaginar (e ainda menos viver) a construção do ninho. A solução - principalmente para a classe trabalhadora - é o aluguel, adquirir um imóvel, ficando em média 30 anos envolvida no  sistema financeiro, pagando e se submetendo.

        Mas existem outras possibilidades. A gente faz parte de gerações que já tiveram a experiência de planejar e executar uma construção em grupo. Para isso temos como base teórica e técnica alguns conceitos da permacultura, que destacam a utilidade e a funcionalidade dos materiais, tem a ver com o abrigo, com a energia, recolhimento de água de chuva e com a utilização dos elementos da natureza nos processos construtivos. E tem a ver também com a inserção das pessoas nesses processos. Com isso podemos evoluir para uma humanização da casa, incluindo a ampliação dessa noção. A casa aqui é considerada uma extensão do corpo, do grupo social e também uma extensão do sistema vivo. Para isso também nos reconectamos no resgate da oca, da maloca, da casa de taipa, do pau-a-pique, do chão batido.. 

      Essa busca resulta em modelos, alternativas e soluções que foram elaboradas por diferentes grupos nas últimas décadas. Em encontros, acampamentos, mutirões e iniciativas solitárias apoiadas no coletivo. Nesse percurso conseguimos otimizar e sintetizar essas influências; conseguimos falar sobre isso e construir soluções a partir da inteligência coletiva. Então quando nós falamos em Casa Viva a gente também fala nesse processo social de inserção e extensão de conhecimento. É quando a gente não sabe mais se a ideia é nossa ou se é dos amigos ou se é o resultado de nós e os amigos juntos. É um processo coletivo.

       Essas soluções de Casa Viva, na forma como trabalhamos aqui na Forqueta, estão relacionadas a um pensamento ecológico, orgânico, biológico, biotecnológico, funcional e adequada à nossa Natureza. Ele é um processo único que foi desenvolvido com os materiais presentes aqui na Forqueta em um processo longo (até agora 9 anos) de experimentação - de tentativa e erro. É esse desenvolvimento e essa experiência que nós nos propomos a compartilhar neste Curso. 

        O processo se baseou primeiro na identificação dos materiais: a rocha, as pedras, os alicerces da casa. A adequação ao relevo do terreno em patamares ao pé da montanha coberta pela Floresta. O sítio está próximo de um rio, então tem água em abundância. Aprendemos a usar essa água. Os alicerces de pedra foram feitos das pedras presentes no terreno por um vizinho detentor do conhecimento tradicional da construção de taipas dos antigos imigrantes italianos da região. O madeiramento encaixado busca o equilíbrio do prumo, os reforços, as estruturas que se encontram... 

        Chegamos então na construção das paredes, com as mesclas das terras, dos barros. E na particularidade de nossa casa que foi o desenvolvimento da cola, baseada no Caeté (lírio-do-mato ou falso-gengibre) que cresce em abundância na borda do rio e perfuma e embeleza as estradas no Vale da Forqueta, bordeiam este rio de corredeira de Águas límpidas. O caeté  fornece matéria verde abundante para iniciar o processo fermentativo com os lactobacilos, e essa é a cola, feita pelas bactérias lácticas e leveduras fermentativas. Usamos esse processo para colar as madeiras do descapoeiramento com o que foi feita a construção. Para abertura do espaço, foram derrubadas algumas árvores de capoeira de 15 a 30 anos de diversas cores e diâmetros. Todo este processo está gravado em nossas paredes. 

         Trabalhar com as madeiras envolve  fazer os tratamentos, porque elas são a principal comida do lugar, elas são a base do ecossistema, através de fungos e insetos... então, desenvolvemos algumas receitas que propiciam o tratamento ecológico dessas madeiras para que o caruncho, as vespas, os cupins tenham um dissabor. Utilizamos algumas receitas e isso faz parte desse processo também: desenvolver as receitas, testar, verificar a consistência de cada material, de cada árvore. E nisso existe também o respeito com cada árvore, cada uma com a sua forma e sua característica. Outros elementos que a gente inseriu são as garrafas. O vidro é um excelente material de construção, não só por deixar passar a luz, mas também como recurso estético, que para nós é muito importante. A Casa Viva tem que ser necessariamente um lugar onde a gente curta estar. O vidro cria uma atmosfera divertida na casa, ele quebra a monotonia do barro que absorve muita luz.

         A partir disso é só a prática mesmo: como a gente constrói a casa, como a gente consegue fazer com que esses materiais sejam uma síntese ao mesmo tempo emocional e racional de todo o processo. E como eles vão sendo moldados a partir das relações entre as centenas de pessoas que passaram por aqui. Todo esse material vai tomando forma a partir de sua característica e cada parede apresenta uma evolução estética, uma evolução construtiva, uma construção de pensamento, de conhecimento. Tudo isso é o reflexo daquilo que a gente pensa, de como a gente pode se expressar nesse processo. A Casa Viva é o reflexo de uma mente atenta  e de um coração vibrante.

        Por fim, é importante também falar de outra dimensão fundamental do processo que é o tempo. O tempo da construção, onde cada processo, cada tarefa tem um método organizativo, tem um caminho de aporte de recursos  - financeiros inclusive - mas principalmente dos materiais e a preparação desses materiais. À medida que organiza a construção da casa, a pessoa que constrói se organiza, ela também constrói seu pensamento naquele ambiente. E isso causa uma série de modificações, inclusive fisiológicas. Ou seja, a pessoa nunca mais é a mesma a partir desse processo, há uma mudança estrutural.

        Esta é a perspectiva. Nosso desejo é que a gente evolua esse conceito da Casa Viva como conhecimento, como coletividade e também no avanço social dessa idéia, nessa satisfação de construir o  ninho, da construção do ambiente, da sua perspectiva de conforto e também de tranquilidade. Porque cada um pode ter seu abrigo com sua energia. E ainda pode organizar suas finanças, sentindo que não vai quebrar porque tá construindo sua casa. A casa viva ela nos dá uma perspectiva de futuro em sociedade - e isso é emocionante.

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